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Lucas Faillace Castelo Branco 12 de fevereiro de 2017 | 14:45

Costumes civilizados, por Lucas Faillace Castelo Branco

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Admite-se que a moralidade média dos cidadãos é marca do grau de civilidade de seu país. A Suíça é um bom exemplo disso. Lá impera, na mentalidade do povo, um forte sentido de dever e de responsabilidade pela coisa pública. Convivi com os suíços por uns sete meses, quando residi em Zurique. Bastou-me essa convivência para extrair dela lições valiosas a respeito de como o modo de ser dos cidadãos, no dia-a-dia, determina o perfil da comunidade e o bem-estar geral.

Logo que cheguei a Zurique, tive de apresentar-me ao setor de imigração para que as autoridades responsáveis soubessem, entre outras coisas, onde residia. Após esse primeiro contato, minha comunicação com o departamento era feita mediante carta. Um dia recebi uma informando-me que deveria, por lei, adquirir o seguro saúde de uma das inúmeras empresas suíças relacionadas em um anexo. Caso não o fizesse, o Estado o faria por mim, às minhas expensas. Acontece que eu já havia adquirido um seguro internacional antes de entrar no país. A compra de mais um implicava despesa desnecessária, a meu juízo.

Informei isso à imigração, por meio de carta, apenas anexando, como prova, cópia do cartão de seguro internacional, sem qualquer ato equivalente a uma autenticação. Pouco tempo depois, o funcionário responsável me escreveu simplesmente para dizer que a situação apresentada por mim era inusitada para ele e que, por ora, iria consultar seu superior. Fiquei intrigado por ter o agente público escrito apenas para informar-me que iria averiguar se meu pleito era passível de ser atendido. Em seguida, enviou-me outra carta afirmando que eu poderia permanecer apenas com o seguro internacional e que, uma vez expirado este, deveria optar por um suíço. O problema foi resolvido com essa simplicidade.

Já um colega advogado, que trabalha no mercado financeiro, havia me contado a respeito de um complicado caso jurídico com que estava lidando. Sem saber o que fazer, ele telefonou para o órgão que supervisiona o setor para tirar dúvidas. O funcionário, após estudar a questão, retornou a ligação dizendo-lhe qual deveria ser a conduta adotada. Espantado com tamanha eficiência, perguntei ao amigo como ele poderia pautar-se pela palavra do agente estatal sem que tivesse nenhum registro do diálogo travado. O advogado não entendeu muito bem minha atitude, respondendo-me que o funcionário era treinado para prestar aquele tipo de auxílio e que, portanto, não havia razão para duvidar da informação fornecida.

A Suíça inclui, em seu regime político, práticas da democracia direta. Certa feita, em um encontro com amigos, iniciou-se discussão a respeito de um referendo vindouro. Um dos presentes manifestou sua posição e, muito educadamente, perguntou o que cada um dos outros pensava. Em nenhum momento houve reação emocional ou qualquer tipo de interrupção da fala alheia, não obstante a diversidade dos pontos de vista apresentados. Todos puderam posicionar-se de forma racional e desapaixonada. E isso relevou um clima natural e de maior amplitude, tanto que, lá pelas tantas, alguém declarou seu apreço e orgulho pela imprensa nacional, afirmando que, quando se tratava de decisões fundamentais, os jornais, não importando seu viés ideológico, sempre buscavam apresentar as questões em debate de forma imparcial.

Em outra ocasião, um amigo que voltava de uma temporada no exterior confidenciou-me, com desconforto, que estava desempregado e que teria de pleitear o seguro desemprego, o que significava ganhar o equivalente ao salário que auferia no trabalho anterior – era um valor substancial. Seu desconforto decorria do seguinte: como ele, que estudara em uma universidade pública, poderia, depois de ser educado às custas do Estado, não dar o retorno esperado à sociedade? Felizmente, para ele e para a sociedade, logo conseguiu emprego, sem que fosse preciso valer-se do amparo estatal.

A prevalência da boa-fé também me chamou a atenção. Quando, jantando em um restaurante, o garçom percebeu que eu e meus amigos estávamos atrasados para um espetáculo, sugeriu que nós fôssemos e retornássemos, depois do evento, para pagar a conta. Eu, o único brasileiro presente, quis dar provas de que realmente retornaria oferecendo-lhe meu cartão de visitas, o que ele rejeitou. O gesto, em verdade, foi visto como desnecessário e acabaram rindo de minha atitude. O garçom, evidentemente, não poria em dúvida nossa honestidade, como eu havia cogitado.

Meu comportamento, no entanto, é explicável à luz da cultura na qual fui criado: nós, brasileiros, somos tratados (e tratamos os outros), frequentemente, como desonestos, até prova em contrário, e essa suposição – lamento dizê-lo – tem base empírica. Essa desconfiança contribui para a insegurança nas relações sociais e para a burocratização do Estado. As leis são elaboradas tendo como premissa a ideia de que as pessoas não são probas. A palavra do cidadão não tem muito valor. Os efeitos colaterais disso são abrangentes e provocam o sentimento geral de que, no Brasil, prevalece uma ineficiência generalizada. Para quase tudo há um complicado ritual de formalidades, por vezes irracional, cujo propósito, frequentemente frustrado, seria garantia da correção.

O modo de ser dos suíços reflete-se, obviamente, na forma em que as decisões políticas são tomadas. Em 2012, os suíços foram chamados a decidir se o período de suas férias anuais deveria ser estendido de quatro para seis semanas. A proposta foi rejeitada. A justificativa para a decisão foi eminentemente racional: caso aprovada, haveria prejuízo para a economia do país. Achei inacreditável. Fico imaginando qual teria sido o resultado de consulta parecida no Brasil.

* Lucas Faillace Castelo Branco é advogado, mestre em Direito (LLM) pela King’s College London, Universidade de Londres, e sócio de Castelo Lima Dourado Advogados.

Lucas Faillace Castelo Branco*
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