Elias de Oliveira Sampaio

Políticas Públicas

Economista do Ministério da Economia. Mestre em Economia e Doutor em Administração Pública pela UFBA. Autor de diversos trabalhos acadêmicos e científicos, dentre eles o livro Política, Economia e Questões Raciais publicado - A Conjuntura e os Pontos Fora da Curva, 2014 a 2016 (2017) e Dialogando com Celso Furtado - Ensaios Sobre a Questão da Mão de Obra, O Subdesenvolvimento e as Desigualdades Raciais na Formação Econômica do Brasil (2019). Foi Secretário Estadual de Promoção da Igualdade Racial (Sepromi) e Diretor-presidente da Companhia de Processamento de Dados do Estado da Bahia (Prodeb), Subsecretário Municipal da Secretaria da Reparação de Salvador (Semur), Pesquisador Visitante do Departamento de Planejamento Urbano da Luskin Escola de Negócios Públicos da Universidade da Califó ;rnia em Los Angeles (UCLA), Professor Visitante do Mestrado em Políticas Públicas, Gestão do Conhecimento e Desenvolvimento Regional da Universidade do Estado da Bahia (Uneb). Professor, Coordenador do Curso de Ciências Econômicas e de Pesquisa e Pós-Graduação do Instituto de Educação Superior Unyahna de Salvador.

Golpista, corrupto e racista

Esses são os adjetivos que deverão se consolidar no inconsciente coletivo brasileiro sobre o governo de Michel Temer.

Além da pecha de golpista dada pelos seus opositores e dos inúmeros casos de corrupção que estão sendo acusados a cúpula palaciana e o próprio mandatário pela Procuradoria Geral da República, a edição da Portaria 1129/2017 sobre trabalho escravo assinada pelo seu ministro do Trabalho, demonstra de forma inequívoca a face institucionalizada do racismo de uma estrutura governamental cujos princípios envoltos nas justificativas para a edição da norma, utiliza métodos e objetivos que muito se assemelham aqueles operados pela lógica política dos senhores e seus respectivos capitães do mato do período da escravidão.

Não é possível classificar de outra forma um governo que se permite formalizar, em pleno século XXI, um documento tentando “requalificar” conceitos que se relacionam com uma das maiores chagas que se abateu sobre o nosso país por quase quatro séculos e cujos efeitos deletérios, ainda hoje, recaem sobre a maioria de nossa população quer seja através da violência do racismo e do preconceito, quer seja pela forma muito mais concreta dessas manifestações através de ações discriminatórias no âmbito individual e institucional que tem trazido desvantagens históricas e estruturais para uma parcela significativa do nosso povo no que se refere as possibilidades de ascensão econômica, educacional e de condições gerais de vida e saúde, em comparação a aqueles que continuam no mesmo no lugar de sempre e que ainda hoje, por serem os maiores beneficiários desses arranjos, vem exercendo o tipo de atrocidade que essa portaria busca impor de maneira homologada pelo aparelho de estado.

Cabe destacar, por exemplo, que a sorte momentânea das pessoas que estão submetidas a moderna escravidão brasileira foi que o sorteio para tratar sobre a constitucionalidade da matéria, no Supremo Tribunal Federal, não caiu nas mãos de Gilmar Mendes, um dos ministros do STF que segundo se noticia, tratou a questão com ironia e cinismo ao insinuar que ele próprio, como os seus motoristas, também estariam sujeitos a trabalhos análogos a escravidão, mas nem por isso reclamavam. Na verdade, esta é apenas uma das inúmeras posições de Mendes que tem sido alvo de severas criticas por parte de alguns de seus colegas de magistratura e da sociedade em geral pelo fato dele, reiteradamente, vir a público de forma aberta e com direito a frases de efeito, defender opiniões que na grande maioria das vezes tem ido de encontro a legítimos interesses da população do país, como no presente caso. Suas atitudes, inclusive, tem motivado reações muito fortes por parte de seus pares tais como a histórica e emblemática afirmação do ex-ministro e ex-presidente do STF Joaquim Barbosa que além de apontar Gilmar Mendes como alguém que ainda nos dias de hoje possuía “capangas no estado do Mato Grosso”, estaria, com suas diversas manifestações públicas discutíveis, “destruindo a credibilidade do judiciário brasileiro”.

O fato é que a simples menção da persistência da existência de trabalhos análogos à escravidão em nosso país já é algo que deveria, no mínimo, envergonhar todo e qualquer cidadão que se julgue legítimo detentor de direitos e deveres perante a nossa sociedade, mas, em se tratando de um magistrado da suprema corte do país isso nos estarrece. Com efeito, o termo análogo utilizado para classificar as formas contemporâneas de escravidão não dizem respeito apenas relações formais ou estilizadas daquilo que sempre se conheceu sobre o processo de escravização de seres humanos.

Trata-se, na verdade, de um substantivo que busca definir a correlação funcional entre aquilo que ocorreu no país do século XVI ao século XIX com o que ocorre nos dias atuais, sobretudo os seus efeitos sobre as pessoas que estão sendo escravizadas considerando todas as transformações que se passaram no país durante todo esse tempo. Por isso, a mera proposição da possibilidade de flexibilizar tal conceito, sob qualquer hipótese, é um grave atentado as nossas estruturas democráticas. Cuidar disso com ironia ou como algo de natureza menor só demonstra o quanto profunda são as marcas que o racismo e a escravidão deixou no nosso país e como, ainda hoje, existem poderosos atores políticos e sociais que parecem nunca terem se conformado com a sua extinção, mesmo que formal.

Todo esse processo se torna mais grave porque já está publico e notório que a presidência da república, através do seu ministério do trabalho, negociou os termos desta norma para atender os interesses da chamada bancada ruralista do congresso nacional tendo como moeda de troca os cerca de 200 votos que esse coletivo ali possui, para safar o próprio mandatário e alguns de seus principais auxiliares do crime de formação de quadrilha e obstrução da justiça, matéria em avaliação na câmara dos deputados. Significa dizer que, o governo Michel Temer está submetendo a humanidade e vida de milhares de brasileiros a sanha selvagem de alguns empresários que, movidos pela avareza do lucro fácil e total desrespeito aos direitos humanos e a sustentabilidade social e ambiental do nosso país, continuam historicamente pilhando e destruindo muito de nossas riquezas naturais e escravizando outros seres humanos a propósito de ganhos econômicos e políticos ilegítimos e das mais diversas naturezas.

O recente caso do decreto que extinguiria a Reserva de obre e Associados na Amazônia (RENCA) e agora esta famigerada portaria, são exemplos mais do que evidentes dessa nossa interpretação. Além disso, a despeito da acertada suspensão dos efeitos da portaria pelo STF, por liminar da ministra Rosa Weber, não custa lembrar que os chamados ruralistas de hoje – patrocinadores da portaria 1129/2017, em primeira instância – são na sua grande maioria, os herdeiros consanguíneos dos senhores de engenho de açúcar do Nordeste, das minas dos antigos Gerais e das fazendas de café do Sudeste que promoveram a escravidão por quase quatro séculos na história brasileira e depois dela, operaram toda a sorte de artimanhas sociais, políticas e institucionais para garantir a manutenção de seu “lugar” na pirâmide socioeconômica a qualquer custo e em detrimento da ascensão e mobilidade daqueles que, a rigor, foram as peças-chave para a criação da riqueza e prosperidade do país durante séculos.

Por isso, o risco continua iminente e nos parece muito difícil que os ataques desse governo aos ganhos político-institucionais e de garantia de direitos que passaram a ser estabelecidos no país com o fim da ditadura militar e, especialmente, através das políticas públicas dos governos Lula/Dilma, sejam deixados de lado após a sua provável escapatória da votação, na câmara federal, da autorização de abertura pelo STF dos processos pelos crimes que está sendo acusado pela PGR. Portanto, o registro que não podemos deixar de fazer é que a sociedade brasileira está pagando um preço muito alto pela existência do governo de Michel Temer e pela inércia e conivência daqueles que a pouquíssimo tempo atrás estavam a bater panelas em suas varandas gourmet e ir para as caminhadas dominicais nos seus bairros nobres, com cara de assepsia vestidos de azul, verde e amarelo fazendo de conta que essas suas atitudes estavam pautadas pela necessidade de um verdeiro processo de transformação no país. Nada disso!

Tal como os filmes de super-herói norte-americanos, eles nunca quiseram mudar o mundo. Quiseram e querem, sempre, salvar o seu mundo e manter os próprios privilégios.

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