Elias de Oliveira Sampaio

Políticas Públicas

Economista do Ministério da Economia. Mestre em Economia e Doutor em Administração Pública pela UFBA. Autor de diversos trabalhos acadêmicos e científicos, dentre eles o livro Política, Economia e Questões Raciais publicado - A Conjuntura e os Pontos Fora da Curva, 2014 a 2016 (2017) e Dialogando com Celso Furtado - Ensaios Sobre a Questão da Mão de Obra, O Subdesenvolvimento e as Desigualdades Raciais na Formação Econômica do Brasil (2019). Foi Secretário Estadual de Promoção da Igualdade Racial (Sepromi) e Diretor-presidente da Companhia de Processamento de Dados do Estado da Bahia (Prodeb), Subsecretário Municipal da Secretaria da Reparação de Salvador (Semur), Pesquisador Visitante do Departamento de Planejamento Urbano da Luskin Escola de Negócios Públicos da Universidade da Califó ;rnia em Los Angeles (UCLA), Professor Visitante do Mestrado em Políticas Públicas, Gestão do Conhecimento e Desenvolvimento Regional da Universidade do Estado da Bahia (Uneb). Professor, Coordenador do Curso de Ciências Econômicas e de Pesquisa e Pós-Graduação do Instituto de Educação Superior Unyahna de Salvador.

Eu quero é Ela: Salvador 2020

Já tratamos deste tema aqui neste espaço, há quase três anos atrás. Relembramos esta frase de Vovô do Ilê de 2006 para, mais uma vez, chamar atenção para necessidade de Salvador eleger um prefeito negro ou uma prefeita negra em 2020. Caso contrário, chegaremos a cinco séculos de nossa existência sem nunca termos tido essa experiência civilizatória. Esse fato, por si, ilustra a face peculiar do racismo estrutural soteropolitano e deve ser revelado como algo profundamente constrangedor para a elite branca que dirige a cidade, desde sempre, e não por nenhum traço de incapacidade inata do povo negro para chegar institucionalmente ao poder, como pensam alguns.

Além disso, a pessoa escolhida precisa ser agressivamente comprometida com os desafios que a conjuntura atual nos coloca diante de um verdadeiro massacre ideológico e de desconstrução dos marcos democráticos institucionalizados nas últimas décadas que, a partir de Brasília, vem sendo desconstruídos de forma assustadoramente veloz. Com efeito, o momento atual está configurando a inauguração de um ciclo reacionário e conservador sem precedentes na história do país, que pode significar retrocessos socioeconômicos do ponto de vista das relações raciais, que remontam ao século XIX. Nesse sentido, a próxima gestão do palácio Thomé de Souza deve dar claros sinais de ter competência política para fazer as transformações econômicas, sociais e institucionais necessárias as urgentes mudanças no sentido de alterar definitivamente a face dessa cidade que, fora dos enclaves de sua beleza natural e daqueles manipulados pela competente linha de montagem de make-up urbanístico tão valorizado pelo atual gestor, continuam a padecer dos piores indicadores de qualidade de vida e acesso deficitário aos mais básicos serviços públicos comunitários.

Vovô do Ilê é um visionário e como precursor de outras instituições congêneres que hoje são tão impontantes quanto o Afro da Liberade-Curuzu, ele e demais atores sociais desse campo do movimento negro, estão nos alertando para essa etapa crítica para nossa sociedade em geral e, muito particularmente, para o povo de ascendência africana do nosso país. Na prática, apesar dos avanços das politicas de ações afirmativas após o processo de redemocratização e da sucessão de governos de centro-esquerda, tais iniciativas não foram suficientemente eficazes para dotar os atores sociais negros e seus aliados verdadeiramente comprometidos, da força politica necessária para operar as transformações mais efetivas para as demandas históricas dessa base social.

Com o resultado nacional das eleições gerais de 2018 e, antes dela, a descontinuidade de ações estruturantes para alterar o quadro de profunda vulnerabilidade por que ainda passa a maioria da população negra brasileira, faz-se evidente esse sinal de alerta para chamarmos a devida atenção de todos os envolvidos nesse debate de forma responsável, porque Salvador é o lugar do país onde as contradições resultantes do racismo estrutural, são as mais perversamente sofisticada, posto que, a despeito dos mais de quinze anos de governos populares e democráticos em nível federal e estadual, a sua população de ascendência africana permanece a mais pobre, a mais violentada por todas as formas de intolerância, muitas vezes pelos braços institucionais do próprio poder público pela incompetência seletiva do racismo institucional atuante sobre as ações mais estruturantes na área da educação, saúde, segurança pública e do acesso à infraestrutura e de saneamento básico mais elementares.

A centralidade de todo esse debate, portanto, está na compreensão de que o perfil do próximo mandatário dessa cidade não pode, mais uma vez, recair sobre alguém cujos efeitos deletérios da falência das ações governamentais só lhe sejam experimentadas através da leitura dos relatórios de gestão, dos briefings e releases de comunicação. Mais que isso: essa liderança deve estar no extremo oposto das orientações políticas que estão emanando do planalto central e dos contraditórios sofismas reverberados por alguns aliados pouco confiáveis. Dito isto, outra questão profundamente desconfortável deve ser francamente colocada em discussão, sob pena de percarmos pela omissão: quais foram os efeitos concretos e objetivos no que concerne apropriação no poder político real – mandatos parlamentares, mandatos executivos e domínio sobre estruturas de governo prestigiadas orçamentariamente – experimentada pela população negra da cidade/estado/país, após o período de redemocratização. Ou melhor, quais foram as opções racialmente equitativas que os chamados partidos progressistas ofereceram a população de maioria negra de Salvador, e mesmo da Bahia, nas eleições majoritárias desde a inauguração do governo Lula, em 2003?

Para além da completa ausência de “caras pretas” realmente comprometidas com o campo das esquerdas, nas cabeças de chapa de todas eleições no nível majoritário, o que se viu foi que do ponto de vista da ocupação do estratégico parlamento federal, por exemplo, foi uma drástica redução de eleições de negros orientados pela esfera democrática e popular e, em paralelo, a ascensão de pessoas com esse mesmo perfil étnico, mas, protagonizando a composição mais conservadora do establishment partidário baiano.

O caso do ex-deputado federal Irmão Lázaro, eleito em 2014 e em seguida alçado a candidato a senador na principal chapa de oposição ao governo estadual nas eleições de 2018 é profundamente emblemático. Ou seja, se pelo espectro mais conservador da política do estado e cidade mais negros da federação há opções eleitorais fora do perfil ibero/ítalo/ hispânico que tem caracterizado o fenótipo dos indicados pelos partidos após 1985, porque isso não pode acontecer na seara da centro-esquerda, que possui muito mais atores sociais e lideranças negras envolvidas no projeto político vitorioso na Bahia desde 2006? Se Irmão Lázaro está hoje cacifado para disputar uma das duas maiores prefeituras do estado (Salvador e Feira de Santana) e pode representar o campo da chamada direita, tendo partido de um patamar de 161 mil votos há apenas quatro anos, porque um deputado federal como Valmir Assunção, um dos pré-candidatos do PT, que está no seu exitoso 3º mandato, com uma media de mais de 100 mil votos por eleição, numa base eleitoral muito mais disputada, não pode ser o diferencial qualitativo de seu campo político para a disputar a Prefeitura de Salvador, em 2020?

Nesta senda, não há como deixar de fora deste debate a oportunidade ímpar de se apresentar Olivia Santana, deputada estadual pelo PC do B, eleita com quase 60 mil votos em 2018, dos quais, 50% na capital em que foi secretaria de educação e, mais recentemente, uma de suas representantes em duas importantes pastas de um governo que foi reeleito com 75% dos votos validos. Por seu turno, concorre também para a dinâmica aqui apresentada, a disponibilidade colocada por Sílvio Humberto, vereador em segundo mandato, atual presidente municipal do PSB e única liderança local do seu partido eleita em 2016, mesmo fazendo sistemática oposição ao atual prefeito, reeleito naquela oportunidade, com cerca de 74% de votos.

Aqui não estamos falando de desejos, mas tão somente revelando três exemplos de “cisnes negros” que, como nos ensina a literatura, servem para quebrar supostos paradigmas seletivamente consolidados. Assim, mesmo se considerarmos as idiossincrasias partidárias da chamada base que sustenta a “hegemonia política” que vigora na Bahia há quatro gestões ou mesmo o calundu dos seus principais “dealers” quanto a ampliação dessa discussão para além dos ambientes controlados da política partidária e dos governos, o alerta que parte significativa dos movimentos negros da cidade está querendo explicitar é que, diante da guinada ideológica à extrema direita que vem passando a sociedade brasileira, os seus efeitos mais nocivos se desdobrarão de forma muito mais contundente sobre a parcela da população historicamente mais vulnerável, os negros e negras em particular, do que daqueles que por ora, ainda se colocam na centro-esquerda do cardápio político-partidário.

Assim, o tempo desse estrato social de homologar Ad aeternum “candidaturas brancas sensíveis” a realidade da maioria negra da cidade de Salvador está na hora de chegar ao fim. Isto é, num território que possui cerca de 80% de sua população composta de pretos e pardos, reivindicar de supostos aliados históricos o protagonismo de seus representantes numa eleição majoritária, não significa querer pautar o debate por “um racialismo vulgar”, como alguns andam a defender. Muito menos, representa a demanda por um voluntarismo benevolente por parte daqueles que detêm o poder das canetas e dos orçamentos partidários. Ao contrário, tanto uma coisa quanto outra se baseia numa necessária problematização sobre aquilo que mais comumente se convencionou chamar da falta de vontade política quanto ao tema quando dos processos decisórios partidários, mas que, historicamente, frise-se, nada mais é do que escolhas precedidas e presididas pelo modelo da hegemonia eurocêntrica estruturada pelo racismo e pela herança da dominação patriarcal e escravagista que vigora neste país há consecutivos e longos cinco séculos.

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